Trabalho há mais de 30 anos com projetos de Arquitetura e Engenharia. Mais que isso, tenho o Processo de Desenvolvimento do Projeto com objeto de pesquisa desde sempre. Simplesmente desenvolver os projetos não me basta, sempre olhei muito para o processo de transformação de informações que caracteriza o trabalho. As razões para ser assim posso apresentar em algum outro texto. O foco aqui é outro.
É claro que meu contato com os projetos começou pela perspectiva técnica e prática, como ocorre com praticamente todo engenheiro ou arquiteto. Mas logo me interessei pelas questões mais profundas e conceituais do processo e pelas gerenciais. Foi quando me deparei com os conceitos de Engenharia Sequencial e Engenharia Simultânea. Foi também nessa época que expandi minhas pesquisas para o universo mais amplo do projeto do produto, ampliando o horizonte que o restrito e peculiar mercado da construção civil oferecia. O desenvolvimento de projetos existe em toda indústria que gere algum tipo de produto, por exemplo o mercado automobilístico ou o de produtos de linha branca (eletrodomésticos e outros).
Há uma questão interessante nestes dois conceitos e muitas vezes mal-entendida. Eles não são excludentes nem contraditórios, pelo contrário, a Engenharia Simultânea contém a Engenharia Sequencial. O que muitas vezes leva a uma percepção de antagonismo ou divergência entre ambos é, na realidade, um entendimento equivocado delas.
Eu não duvidaria se mais da metade do mercado da construção civil caísse nesse engano, pois é dessa forma enganada que bem mais da metade dele se comporta. E aqui surge uma constatação a que cheguei há muitos anos: entre o mercado entender o que é Engenharia Simultânea e saber fazê-la acontecer na prática há um abismo.
A Engenharia Sequencial, em resumo, estabelece o sequenciamento de etapas na criação de um Produto. É uma forma bastante didática para compreender o processo de produção, bem passo a passo, fase a fase, etapa a etapa. Ela estabelece, por exemplo, que primeiramente se desenvolva o projeto do produto, depois se planeje sua produção e, só então, se inicie realmente a fabricação.
Há claramente uma lógica bem simples nisso com fundamento simples numa sequenciamento temporal.
Usando a mesma abordagem sequencial, é possível estabelecer as etapas dentro de cada uma desta fases. Para o Projeto do Produto, prevê a Engenharia Sequencial, resumidamente:
Não é difícil reparar que a construção civil ainda se processa desta forma sequencial em muitos casos. Na realidade, a maioria ainda, vejo isso todo santo dia. Um exemplo clássico deste sequenciamento é a elaboração de orçamentos e cronogramas apenas após os projetos estarem já bem avançados, o que, na visão da Engenharia Sequencial, está coerente.
Na segunda metade do século XX surgiu a Engenharia Simultânea. Quebrou-se o paradigma da estanquidade entre as fases do processo de lançamento de um produto. Ou seja, as equipes de planejamento do processo produtivo entrariam em campo juntamente com as equipes de projeto do produto. Aliás, admitindo essa quebra de sequenciamento, seria possível imaginar, inclusive, as equipes de produção em ação paralela ao projeto do produto e planejamento.
A representação máxima da quebra do paradigma do sequenciamento imporia que as três fases fossem realmente paralelas, mas a prática logo demonstrou que esse paralelismo absoluto não seria viável. Aqui começa a percepção de que a Engenharia Simultânea não exclui totalmente alguma forma de sequenciamento, porém numa granularidade tão reduzida que a simultaneidade passa a ser a característica marcante do processo.
Aprofundando o conceito da simultaneidade para a fase do Projeto do Produto, teríamos:
Neste aprofundamento, onde se relacionam tarefas mais pontuais, é fácil perceber a impossibilidade de levar a simultaneidade indefinidamente a qualquer subdivisão do processo. Há um claro limite. Mas isso não significa que não haja grandes vantagens. Aliás, é por conta destas vantagens que a Engenharia Simultânea vem se consolidando vagarosamente há algumas décadas, apesar de toda a resistência e dificuldade cultural, sobretudo na construção civil.
A representação mais tradicional da Engenharia Simultânea costuma mostrar o paralelismo entre as etapas do Projeto do Produto e o Planejamento do Processo Produtivo, indicando claramente um trabalho conjunto e simultâneo entre estas equipes.
A simultaneidade do trabalho de Projeto do Produto com o Planejamento do Processo Produtivo, impõe a necessidade de trocas contínuas de informações entre estas equipes, algo que não ocorreria na Engenharia Sequencial. Na Engenharia Sequencial, um fluxo de informação do Planejamento do Processo Produtivo para o Projeto do Produto significaria retrocesso. Na Engenharia Simultânea, além de plenamente aceitável, essa troca é, inclusive, estimulada. Mas isso torna ambos os trabalhos mais complexos e exige equipes mais preparadas e habituadas a estes ambientes de trocas intensivas e multivariadas.
A simultaneidade interna do Projeto do Produto tem uma limitação de fundo lógico (ou metodológico), o que dá a esse processo interno uma característica mais próxima do sequenciamento, o que sempre foi habitual para as equipes. O grau de dificuldade aumentaria se a simultaneidade aumentasse. E há, atualmente, métodos de trabalho que têm intensificado esta simultaneidade ao estabelecer outros critérios de decomposição e sequenciamento do processo. Mas isso é assunto para outro texto,
Já a simultaneidade entre Projeto de Produto e Planejamento do Processo Produtivo é uma novidade incômoda para ambos os lados. Culturalmente, Planejamento recebe informações mais avançadas e, se constatar alguma necessidade de mudança, retrocede para o Projeto do Produto para realizar mudanças, o que gera retrabalhos que não agradam a equipe de Projeto do Produto. Mas as variáveis trabalhadas no Planejamento, custos e prazos, possuem apelo muito forte para o proprietário e empurram o processo de volta, goela abaixo do Projeto do Produto. Não é difícil perceber uma das fontes culturais de resistência a essa maior integração: o trauma do retrocesso e do retrabalho.
Situação traumática similar foi construída internamente no Projeto do Produto, mas com outro processo de gênese. O sequenciamento das etapas do projeto foi deliberadamente estendido às especialidades técnicas. Porém, o fundamento do sequenciamento das etapas é a cronologia, já a separação das especialidades é fundamentada da divisão do conhecimento promovida pelos avanços técnicos e tecnológicos (que são sentidos na própria estruturação dos grupos socioeconômicos). São separações criadas por processos de naturezas bastante diferentes e que são percebidos equivocadamente como relacionados. A Engenharia Sequencial não contempla em sua origem o sequenciamento de especialidades. Isto foi incluído em função de uma prática desvirtuada dela no mercado.
Não há na Engenharia Sequencial nada que promova o sequenciamento para as especialidades técnicas. Tanto é que, em tempos mais remotos, não havia sequer a separação destas especialidades. Ou seja, um Estudo Preliminar contemplaria todas as especialidades pertinentes a um empreendimento, assim como todas as demais etapas o fariam igualmente. A discriminação de conteúdos técnicos, no rigor teórico, nada tem a ver com o sequenciamento da Engenharia Sequencial. Ela é fruto da estratificação dos conteúdos técnicos promovida pelo progresso científico. Na realidade, parte dela é fruto de um processo socioeconômico de segregação dos grupos formados pela estratificação dos conteúdos. Algo de natureza sociológica que nada tem a ver com a Engenharia Sequencial.
Mas o fato importante é que não há razão lógica para que o sequenciamento de etapas seja aplicado como método aos pacotes de trabalho discriminados por especialização. Ou seja, não há razão para um sequenciamento metodológico entre Arquitetura, Estruturas, Instalações ou qualquer outra especialidade pertinente aos conteúdos técnicos do produto em desenvolvimento. O sequenciamento necessário é o de tarefas mais pontuais, como previsto na Engenharia Simultânea. O sequenciamento mais abrangente, tão comum no mercado, é fruto de um equívoco causado por pressões socioeconômicas, ou má compreensão do processo, e seria até desencorajado pela Engenharia Sequencial e muito mais pela Simultânea.
É claro que tais pressões são naturais no processo de evolução sociopolítica e as distorções, na prática das teorias, produzidas por elas acontecem em qualquer área. Como se diz: na prática, a teoria é outra. A leitura correta deste antigo ditado deve induzir à constatação de que não produzimos na prática o que definimos nas teorias e a explicação é simples: as teorias são construídas nos ambientes controlados e isolados do idealismo científico ou acadêmico. Já a prática não tem como escapar das pressões e tensões existentes fora dos ambientes laboratoriais. Temos aqui um caso exemplar da tradicional divergência do idealismo de Platão e o realismo de Aristóteles: o mundo perfeito das ideias e a factualidade inexpugnável da realidade. Há 2500 anos convivemos com isso e ainda lutamos para lidar naturalmente com a situação.
A evolução do processo de criação de produtos orienta o aprimoramento das teorias e modelos de processos, ao mesmo tempo em que devemos nos pautar por elas para o bom desempenho dos processos e não pelas pressões sociopolítico e econômicas. A estratificação do conhecimento, ao mesmo passo que reforçou o problema por separar pacotes de trabalho que puderam ser deliberadamente sequenciados, retirou das grades de formação acadêmica os conteúdos que permitem aos profissionais lidarem com naturalidade e clareza sobre a divergência entre o idealismo e o realismo.
O desafio que se coloca então é: como resolver os problemas do processo de criação de um produto complexo como o da construção civil, se os fundamentos deste processo estão mal compreendidos e sua estruturação prática está equivocadamente condicionada pelas pressões externas em detrimento das formulações metodológicas teoricamente mais adequadas?
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